11 juin 2025

NOTE : Rumo a uma justiça pós-colonial? Portugal face às suas responsabilidades históricas

Rui GARRIDO, Catherine MAIA

No dia 28 de maio, por ocasião do Dia Mundial de África, teve lugar em Genebra o Colóquio Internacional do Gengibre Literário, realizado sob a égide das autoridades suíças, da União Africana, da Francofonia e do Senegal, no qual foram debatidas questões relativas às reparações dos colonialismos, nas suas dimensões jurídica, política e simbólica. O ano de 2025, proclamado pela União Africana como o "Ano da Justiça para Africanos e Pessoas de Ascendência Africana por meio de Reparações", oferece um contexto particularmente propício a esta reflexão, que o caso de Portugal ilustra de forma especialmente elucidativa.

Com efeito, em 2024, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa reconheceu publicamente a responsabilidade histórica dePortugal nos crimes coloniais – um gesto até então impensável, que abriu caminho a uma eventual reparação. Mas como traduzir esse reconhecimento em factos concretos, e sobretudo, em direito?

O principal obstáculo continua a ser o princípio da intertemporalidade, herdado da sentença arbitral Island of Palmas (1928), segundo o qual um ato só pode ser julgado de acordo com as normas jurídicas em vigor à data da sua prática. Este princípio dificulta qualquer reconhecimento jurídico dos crimes coloniais, que à época não estavam codificados como tal.

No entanto, emergem contestações a esta visão estática do direito. Alguns invocam a cláusula Martens (1899), que recorda a autoridade das “leis da humanidade” e da “consciência pública” no direito humanitário; outros apoiam-se em abordagens críticas do Sul Global, apelando a uma releitura ética e descolonial do direito internacional.

Em Portugal, este debate sobre as reparações não teve qualquer expressão até 2019, quando se começou a discutir a restituição de artefactos africanos em espaços museológicos nacionais.  Por outro lado, a ideologia do lusotropicalismo, cunhada por Gilberto Freyre em 1950 e amplamente instrumentalizada pelo regime autoritário de Salazar (1933-1974), apresentava a colonização portuguesa como mais branda (ou humana) do que a dos outros impérios. No entanto, essa visão idealizada não resiste à análise histórica dos factos perante os diversos massacres perpetrados nas colónias portuguesas.

Do ponto de vista jurídico, alguns factos ocorridos após a adesão de Portugal à ONU em 1955, poderão constituir violações de obrigações internacionais. Todavia, o facto de o país só ter começado a ratificar os principais tratados relativos aos direitos humanos após 1975, na sequência do regime democrático instaurado pela Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974, limita qualquer responsabilidade formal.

Neste contexto, permanecem no entanto três vias possíveis de reparação: a via legislativa, a exemplo da lei de 2015 sobre a naturalização dos judeus sefarditas expulsos da Península Ibérica no século XV, que poderia inspirar mecanismos simbólicos semelhantes para os descendentes das populações nativas dos territórios coloniais; a via diplomática, através de acordos de cooperação reforçada com as antigas colónias; e a via societal, centrada na memória, no ensino, na restituição patrimonial e no reconhecimento histórico no espaço público.

Seja qual for o país, a justiça pós-colonial deve começar, acima de tudo, com uma vontade política sincera, com uma palavra que vincula, e com atos que a acompanhem, para que o direito – que se pretende instrumento de paz – não permaneça surdo às vozes que clamam por justiça.



Punição de um escravo no Brasil, por Mauricio Rugendas (circa 1830) | Domínio Público

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