3 avril 2018

NOTE : Responsabilidade de proteger: o caso da Síria

Catherine MAIA

Após as tragédias nos Balcãs e no Ruanda na década de 1990, que conduziram o Conselho de Segurança da ONU a criar dois Tribunais penais internacionais ad hoc, a comunidade internacional esteve confrontada com a questão da forma de reação mais eficiente quando decorrem violações flagrantes e sistemáticas dos direitos humanos e do direito humanitário. Tal questão tropeça no dilema de saber se se deve reconhecer que os Estados têm uma soberania incondicional sobre os seus assuntos internos ou que a comunidade internacional tem o direito, como também o dever, de intervir num país para fins humanitários, sendo o princípio da igualdade soberana como o respeito pelos direitos humanos entre os objetivos principais consagrados na Carta das Nações Unidas (respetivamente nos artigos 2, n° 7, e 1, n° 3).

Elementos de resposta foram avançados em diversos relatórios. A expressão “responsabilidade de proteger” (RdP) foi enunciada pela primeira vez no relatório do mesmo nome da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal, criada pelo Governo canadense em 2001. O relatório concluía que a soberania do Estado implica não só o poder de controlar os seus assuntos nacionais, mas igualmente o dever de proteger a sua população de atrocidades em massa, quais sejam, genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Tal responsabilidade cabe, em primeiro lugar, ao Estado. É apenas se um Estado fracassar em evitar essas violações ou for quem as perpetra, que a comunidade internacional deve, em segundo lugar, utilizar as medidas necessárias para proteger a população.

Em 2004, o Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças, estabelecido pelo então Secretário-Geral Kofi Annan, endossou o novo padrão da responsabilidade de proteger, afirmando uma responsabilidade coletiva da comunidade internacional perante atrocidades em massa que Estados se mostram incapazes ou indispostos a impedir. O recurso à coerção militar, que poderá ser decidido pelo Conselho de Segurança em tais ocorrências, deverá responder a critérios de legitimidade: autoridade adequada, justa causa, intenção certa, último recurso, proporcionalidade dos meios e perspetivas razoáveis. No seu relatório Em maior liberdade: desenvolvimento, segurança e direitos humanos para todos de 2005, o então Secretário-Geral Kofi Annan concordou com esta abordagem, permitindo que, o mesmo ano, o princípio da responsabilidade de proteger seja oficialmente admitido por todos os Estados membros das Nações Unidas numa Cimeira Mundial.

Na prática, o Conselho de Segurança referiu-se à responsabilidade de proteger em vários casos (Sudão, Costa do Marfim…), sendo o conflito na Líbia provavelmente o mais emblemático pela rapidez com que reagiu, por um lado, autorizando uma intervenção militar com vista a proteger os civis apenas pouco mais de um mês depois do início das revoltas contra o regime de Mouammar Gaddafi, o que levou à sua queda, e, por outro lado, decidindo denunciar a situação ao Tribunal Penal Internacional.

O caso da Síria apresenta similaridades com o da Líbia. No prolongamento do que foi chamado a Primavera Árabe – uma onda de protestos e revoltas contra Governos do mundo árabe que eclodiu em 2011 –, manifestações populares têm início na Síria contra o regime de Bashar al-Assad a partir de 2011. As manifestações são reprimidas brutalmente pelo Governo, levando a uma escalada da violência no país, as forças armadas nacionais devendo lutar não somente contra diversas organizações rebeldes, mas também contra a milícia terrorista “Estado Islâmico”.

Apesar de ser o maior conflito armado atualmente em curso, que já resultou em centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados e refugiados, até hoje, não houve acordo no Conselho de Segurança para implementar o princípio da responsabilidade de proteger. Projetos de resoluções autorizando o uso da força foram confrontados com os vetos da Rússia e da China, bem como com as abstenções de vários outros países. Ao passo que a Rússia e a China enfatizam o facto que uma solução para a crise síria pode unicamente ser alcançada por meio de um processo político, diversos Estados – entre os quais os Estados Unidos da América e países europeus aliados – justificam a sua intervenção militar com base numa conceção extremamente extensiva da legítima defesa, que elude o consentimento do Estado.

Com certeza, não há uma resposta simples aos massacres aos quais assistimos, impotentes, na Síria. No entanto, aparece cada vez mais essencial focar os nossos esforços tanto na ação política preventiva, como no desarmamento e no pacifismo.




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O presente texto é o fruto de algumas reflexões que foram discutidas na ocasião do debate organizado pelo Forum Demos sobre "As democracias europeias e a crise humanitária na Síria: que responsabilidade de proteger?". Moderado por Álvaro Vasconcelos, o debate decorreu na Cooperativa a Árvore (Porto), no dia 19 de Março e contou com as intervenções de Radwan Khalifeh (MBA graduate, Porto Business School); Sandra Dias Fernandes, (Professora na Área de Relações Internacionais e Ciência Política na Universidade do Minho), Catherine Maia (Professora de Direito Internacional Público na Universidade Lusófona do Porto e Presidente da Multipol) e José Manuel Pureza (Vice-Presidente da Assembleia da República e Professor de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra).

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