Em dois acórdãos proferidos em 14 de março de 2017, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu, no âmbito de um reenvio prejudicial dos Tribunais de Cassação respetivamente francês e belga, sobre a interpretação da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional.
O caso foi levado ao TJ
depois de duas melhures muçulmanas terem sido demitidas por se terem recusado a
retirar o véu durante o horário de trabalho. Uma delas, residente em França,
opôs-se a fazê-lo depois de um cliente se ter mostrado incomodado. A outra situação
dizia respeito a uma que trabalhava como rececionista na empresa G4S Secure
Solutions, que proíbe o uso de símbolos religiosos ou políticos.
- Acórdão no processo C-188/15 Bougnaoui e Association de défense des droits de l’homme (ADDH) / Micropole Univers
- Acórdão no processo C-157/15 Achbita, Centrum voor Gelijkheid van kansen en voor racismebestrijding / G4S Secure Solutions
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)
Bougnaoui e Association de défense des droits de l’homme (ADDH) / Micropole Univers,
14 de março de 2017, C-188/15
14 de março de 2017, C-188/15
25 Com a sua questão, o órgão jurisdicional
de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva
2000/78 deve ser interpretado no sentido de que a vontade de um empregador de
ter em conta os desejos de um cliente de que as prestações de serviços do
referido empregador deixem de ser asseguradas por uma trabalhadora que usa um
lenço islâmico constitui um requisito profissional essencial e determinante na
aceção dessa disposição.
26 Em primeiro lugar, há que recordar
que, nos termos do artigo 1.° da referida diretiva, esta tem por objeto
estabelecer um quadro geral para lutar contra a discriminação em razão da
religião ou das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação
sexual, no que se refere ao emprego e à atividade profissional, com vista a pôr
em prática nos Estados‑Membros o princípio da igualdade de tratamento.
27 Quanto ao conceito de «religião», que
figura no artigo 1.° dessa diretiva, deve salientar‑se que essa diretiva não
define o referido conceito.
28 Não obstante, o legislador da União
referiu‑se, no considerando 1 da Diretiva 2000/78, aos direitos fundamentais
tal como os garante a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem
e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a
seguir «CEDH»), que prevê, no seu artigo 9.°, que qualquer pessoa tem direito à
liberdade de pensamento, de consciência e de religião, implicando este direito
a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de
manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em
público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração
de ritos.
29 No mesmo considerando, o legislador da União
referiu‑se igualmente às tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros,
enquanto princípios gerais do direito da União. Ora, entre os direitos que
resultam dessas tradições comuns e que foram reafirmados na Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), figura o direito à liberdade
de consciência e de religião consagrado no artigo 10.°, n.° 1, da Carta.
Em conformidade com esta disposição, este direito implica a liberdade de mudar
de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião
ou a sua convicção, individual ou coletivamente, em público ou em privado,
através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. Conforme
resulta das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais
(JO 2007, C 303, p. 17), o direito garantido no artigo 10.°,
n.° 1, da mesma corresponde ao direito garantido no artigo 9.° da CEDH e,
em conformidade com o artigo 52.°, n.° 3, da Carta, tem o mesmo sentido e
o mesmo âmbito que aquele.
30 Na medida em que a CEDH e,
consequentemente, a Carta atribuem uma aceção ampla ao conceito de «religião»,
dado que incluem neste conceito a liberdade das pessoas de manifestarem a sua
religião, há que considerar que o legislador da União pretendeu manter a mesma
abordagem quando da adoção da Diretiva 2000/78, pelo que há que interpretar o
conceito de «religião» que figura no artigo 1.° dessa diretiva no sentido de
que abrange quer o forum internum, isto é, o facto de ter
convicções, quer o forum externum, ou seja, a manifestação em
público da fé religiosa.
31 Em segundo lugar, há que observar
que a decisão de reenvio não permite saber se a questão do órgão jurisdicional
de reenvio se baseia na constatação de uma diferença de tratamento diretamente
fundada na religião ou nas convicções ou na diferença de tratamento
indiretamente fundada nesses critérios.
32 A este respeito, se o despedimento de A.
Bougnaoui se baseou no desrespeito de uma regra interna em vigor nessa empresa,
que proibia o uso de qualquer sinal visível de convicções políticas,
filosóficas ou religiosas, e caso se afigure que essa regra aparentemente
neutra implica, de facto, uma desvantagem concreta para as pessoas que seguem
determinadas religiões ou convicções, como A. Bougnaoui, o que cabe a esse
órgão jurisdicional verificar, deve concluir‑se que existe uma diferença de
tratamento indiretamente fundada na religião ou nas convicções, na aceção do
artigo 2.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 2000/78 (v., neste sentido,
acórdão proferido hoje, G4S Secure Solutions, C‑157/15, n.os 30
e 34).
33 Todavia, em conformidade com o
artigo 2.°, n.° 2, alínea b), i), dessa diretiva, essa diferença de
tratamento não constituirá uma discriminação indireta se for objetivamente
justificada por um objetivo legítimo, como a implementação, pela Micropole, de
uma política de neutralidade relativamente aos seus clientes, e se os meios
para a realização desse objetivo forem adequados e necessários (v., neste
sentido, acórdão proferido hoje, G4S Secure Solutions, C‑157/15, n.os 35
a 43).
34 Em contrapartida, caso o
despedimento de A. Bougnaoui não se baseie na existência de uma regra interna
como a referida no n.° 32 do presente acórdão, cumpre apreciar, como
sugerido pela questão do órgão jurisdicional de reenvio, se a vontade de um
empregador de ter em conta o desejo de um cliente de que as prestações deixem
de ser asseguradas por uma trabalhadora que, como A. Bougnaoui, foi destacada
por esse empregador junto desse cliente e que usa um lenço islâmico constitui
um requisito profissional essencial e determinante na aceção do artigo 4.°,
n.° 1, da Diretiva 2000/78.
35 A este respeito, segundo os termos
dessa disposição, os Estados‑Membros podem prever que uma diferença de
tratamento baseada numa característica relacionada com qualquer dos motivos
mencionados no artigo 1.° da referida diretiva não constituirá discriminação
sempre que, em virtude da natureza da atividade profissional em causa ou do
contexto da sua execução, essa característica constitua um requisito essencial
e determinante para o exercício dessa atividade, na condição de o objetivo ser
legítimo e o requisito proporcional.
36 Assim, cabe aos Estados‑Membros prever,
se necessário, que uma diferença de tratamento baseada numa característica
relacionada com um dos motivos referidos no artigo 1.° da mesma diretiva não
constitui uma discriminação. Parece ser o que sucede no caso em apreço, por
força do artigo L. 1133‑1 do Código do Trabalho, o que, contudo, cabe ao
órgão jurisdicional de reenvio verificar.
37 Uma vez feitas estas precisões,
importa recordar que o Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado que
resulta do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2000/78 que não é o motivo em
que se baseia a diferença de tratamento, mas uma característica relacionada com
esse motivo, que deve constituir um requisito profissional essencial e
determinante (v. acórdãos de 12 de janeiro de 2010, Wolf, C‑229/08,
EU:C:2010:3, n.° 35; de 13 de setembro de 2011, Prigge e o., C‑447/09,
EU:C:2011:573, n.° 66; de 13 de novembro de 2014, Vital Pérez, C‑416/13,
EU:C:2014:2371, n.° 36; e de 15 de novembro de 2016, Salaberria Sorondo, C‑258/15,
EU:C:2016:873, n.° 33).
38 Por outro lado, há que salientar que, em
conformidade com o considerando 23 da Diretiva 2000/78, só em circunstâncias
muito limitadas uma característica relacionada, designadamente, com a religião
pode constituir um requisito profissional essencial e determinante.
39 Importa também sublinhar que, nos
próprios termos do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2000/78, a
característica em causa só pode constituir um requisito desse tipo «em virtude
da natureza da atividade profissional em causa ou do contexto da sua execução».
40 Resulta destas diferentes
indicações que o conceito de «requisito essencial e determinante para o
exercício dessa atividade», na aceção da referida disposição, remete para uma
exigência objetivamente ditada pela natureza ou pelas condições de exercício da
atividade profissional em causa. Em contrapartida, não pode abranger
considerações subjetivas, como a vontade do empregador de ter em conta os
desejos concretos do cliente.
41 Por conseguinte, há que responder
à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 4.°,
n.° 1, da Diretiva 2000/78 deve ser interpretado no sentido de que a
vontade de um empregador de ter em conta os desejos de um cliente de que as
prestações de serviços do referido empregador deixem de ser asseguradas por uma
trabalhadora que usa um lenço islâmico não pode ser considerada um requisito
profissional essencial e determinante na aceção dessa disposição.
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