15 juin 2017

NOTE : A retirada dos Estados Unidos da América do Acordo de Paris: algumas reflexões sobre o instituto da denúncia aos tratados internacionais

Luciano MENEGUETTI

Recentemente alguns dos principais jornais do mundo (v.g., The New York Times[1], Le Monde[2], The Guardian[3], Independent[4], El País[5], Folha de São Paulo[6], Clarín[7]) noticiaram a intenção manifestada por Donald Trump, atual Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), em se retirar do Acordo de Paris, o maior tratado internacional já pactuado até o presente momento para o combate global das mudanças climáticas e dos deletérios efeitos delas decorrentes.


Diante desta triste notícia que teve uma repercussão global amplamente negativa e que foi repudiada ao redor do mundo, uma questão jurídica que se põe diz respeito à possibilidade da retirada do país americano do referido Acordo e sobre como isso poderia ocorrer de conformidade com o disposto nas normas internacionais relativas ao tema.

Contudo, antes de se passar ao tratamento específico dessa questão, torna-se importante tecer algumas breves considerações sobre os motivos e o caminho que conduziram a quase que totalidade dos Estados do globo a concluírem o Acordo de Paris.

Voltando um pouco no tempo, no ano de 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), realizada na cidade do Rio de Janeiro, foi adotada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (CQNUMC)[8], também conhecida como UNFCCC (United Nations Framework Convention on Climate Change)[9], um tratado internacional multilateral (cujo texto já se encontrava terminado)[10] a partir do qual os Estados passaram a expressar grande preocupação com as mudanças climáticas no planeta e seus efeitos, em especial o aquecimento adicional da superfície e da atmosfera da Terra (efeito estufa) e os decorrentes impactos negativos sobre os ecossistemas naturais e a humanidade (Preâmbulo).

Nos termos do seu art. 2º, o objetivo final da Convenção é a cooperação internacional dos países por meio de ações coordenadas, na busca da “estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica[11] perigosa no sistema climático”, razão pela qual ela estabelece “normas para reduzir o lançamento não só de dióxido de carbono na atmosfera, mas daqueles gases não regulados pelo Protocolo de Montreal[12], responsáveis, contudo, pela elevação da temperatura do clima terrestre”.[13]

De acordo com o art. 7º da CQNUMC, foi estabelecida uma Conferência das Partes (Conference of the Parties), um órgão supremo da Convenção, responsável por manter regularmente sob exame a implementação de suas disposições e de quaisquer outros instrumentos jurídicos que a Conferência vier a adotar, além de tomar as decisões necessárias para promover a sua efetiva implementação. A partir de então, os países membros da Convenção têm se reunido periodicamente em reuniões denominadas Conferência das Partes (COP), que são também conhecidas como Conferências do Clima, no intuito de efetivar as disposições convencionais e alcançar suas finalidades.

Na 21ª Conferência das Partes (COP21), realizada em Paris, foi adotado em 12 de dezembro de 2015, por mais de 195 países, o Acordo de Paris[14], que entrou em vigor internacional em 04 de novembro de 2016. Nele os Estados reconhecem que a mudança do clima mundial é uma preocupação comum da humanidade, bem como a necessidade de uma resposta eficaz e progressiva à ameaça urgente dessa mudança com base no melhor conhecimento científico disponível (Preâmbulo), razões pelas quais o tratado prevê metas conjuntas (um plano de ação global) para o alcance da redução do aquecimento global e para a mitigação dos efeitos desse aquecimento, o que constitui seu objetivo principal.

Conforme disposto em seu art. 2 (1) o Acordo, “ao reforçar a implementação da Convenção [CQNUMC], incluindo seu objetivo, visa fortalecer a resposta global à ameaça da mudança do clima, no contexto do desenvolvimento sustentável e dos esforços de erradicação da pobreza, incluindo: (a) manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, e envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais, reconhecendo que isso reduziria significativamente os riscos e os impactos da mudança do clima; (b) aumentar a capacidade de adaptação aos impactos negativos da mudança do clima e promover a resiliência à mudança do clima e um desenvolvimento de baixa emissão de gases de efeito estufa, de uma maneira que não ameace a produção de alimentos; e (c) tornar os fluxos financeiros compatíveis com uma trajetória rumo a um desenvolvimento de baixa emissão de gases de efeito estufa e resiliente à mudança do clima”.

Baseado na CQNUMC, o Acordo de Paris constitui, portanto, o maior esforço mundial até o presente momento, no sentido de fortalecer a resposta global à ameaça das mudanças climáticas e a capacidade dos países para lidar com os impactos negativos dessas mudanças que afetam a todos, indistintamente.

Passando-se ao tema central desta reflexão, conforme mencionado anteriormente, os EUA assinaram o Acordo de Paris em 22 de abril de 2016, ratificando-o posteriormente em 03 de setembro de 2016. A partir de 04 de novembro de 2016 o tratado entrou em vigor internacional para o país norte-americano, passando a vinculá-lo juridicamente.[15] Contudo, o atual presidente americano, Donald Trump, anunciou recentemente (01.06.2017) que os EUA vão se retirar do Acordo firmado.

No âmbito do Direito Internacional, o mecanismo hábil para que um Estado possa se retirar de um tratado internacional anteriormente pactuado de forma livre e consciente é a denúncia, instituto que pode ser entendido como “um ato praticado unilateralmente pelas autoridades competentes dos Estados partes que desejem desvincular-se dos seus compromissos”.[16] Em sentido técnico, portanto, a denúncia é uma declaração unilateral por meio da qual uma parte encerra sua participação em um tratado.[17]

Como regra, a possibilidade de denúncia ou não a um tratado internacional, bem como a sua forma de operacionalização é regulada pelo próprio tratado. Nesse sentido, o primeiro passo para a verificação da possibilidade de retirada do país norte-americano do Acordo e como isso poderia ocorrer de conformidade com o disposto nas normas internacionais consiste em analisar as próprias disposições do tratado. Nesse sentido, conforme dispõe o art. 28 (1) do Acordo de Paris, um Estado parte poderá denunciá-lo depois de três anos de sua entrada em vigor (o que ocorreu em 04 de novembro de 2016), por meio de notificação por escrito ao Depositário.[18] Em razão dessa disposição convencional a primeira conclusão a que se chega é que a saída dos EUA do Acordo de Paris não poderá ser imediata, conforme anunciado pelo Presidente Donald Trump, uma vez que o país somente poderá denunciá-lo a partir de 04 de novembro de 2019, data em que o tratado completará três anos de vigência internacional.

Outra conclusão a que se chega é que a simples manifestação oral do Presidente norte-americano não é suficiente para satisfazer as formalidades estabelecidas pelo Acordo de Paris para a retirada de um de seus Estados Partes. Isto porque o seu art. 28 (1) prevê também a necessidade de que a denúncia seja feita por escrito dirigido ao Secretário-Geral das Nações Unidas, que conforme o art. 26[19] do Acordo é o Depositário do tratado.

O art. 28 (2) do Acordo estabelece também que a denúncia somente produzirá efeito depois de um ano, no mínimo, da data de seu recebimento pelo Secretário-Geral da ONU (uma espécie de aviso prévio), facultando-se ao Estado Parte estipular uma data maior, porém nunca inferior a um ano. Assim, conclui-se também que caso a denúncia seja levada a efeito pelos EUA, dentro do prazo mínimo fixado pelo Acordo, o país somente estará desobrigado de cumprir as obrigações internacionalmente assumidas a partir de 04 de novembro de 2020.

No entanto, uma solução juridicamente idônea para o amparo da pretensão do Presidente Donald Trump quanto à uma possível saída imediata dos EUA do Acordo de Paris, seria a aplicação do disposto no art. 54 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT), de 1969, segundo o qual a “extinção de um tratado ou a retirada de uma das partes pode ter lugar: a) de conformidade com as disposições do tratado; ou b) a qualquer momento, pelo consentimento de todas as partes, após consulta com os outros Estados contratantes” (grifo nosso). Estas duas possibilidades dizem respeito à extinção ou denúncia aos tratados internacionais de forma consensual (no primeiro caso, um consentimento prévio; no segundo, um consentimento posterior à conclusão e entrada em vigor do tratado), uma situação que se encontra bem estabelecida no âmbito do Direito Internacional costumeiro.[20]

Assim, embora os EUA não sejam Parte na referida Convenção, poderia se cogitar na aplicação do referido dispositivo convencional ao caso em análise, em razão da sua natureza consuetudinária (consuetudo est servanda). Desse modo, uma vez que a unanimidade dos Estados Partes do Acordo de Paris acorde no sentido de permitir a denúncia imediata (sem atender ao prazo de três anos) e a liberação do aviso prévio (sem o atendimento do prazo de um ano a partir da denúncia) em favor do país norte-americano, operar-se-ia a sua saída imediata. No entanto, no contexto fático, esta possibilidade revela-se muito pouco provável diante do rechaço internacional por parte de muitos países à decisão do Presidente norte-americano.[21]

Em seu discurso, o presidente norte-americano elencou diversos motivos pelos quais entende que o Acordo de Paris é prejudicial aos interesses dos EUA, sobretudo, em termos econômicos. Diante desse quadro e ainda invocando a aplicação das disposições da CVDT sob a feição de normas internacionais costumeiras (fundadas no consenso dos Estados), no intuito de encontrar alternativas à completa saída do país do Acordo, poderia ainda se cogitar em uma remota hipótese de denúncia parcial do tratado em questão. Esta possibilidade encontra fundamento no art. 54 c./c. o art. 44 (1) da Convenção. Este último assim dispõe: “O direito de uma parte, previsto num tratado ou decorrente do artigo 56, de denunciar, retirar-se ou suspender a execução do tratado, só pode ser exercido em relação à totalidade do tratado, a menos que este disponha ou as partes acordem diversamente”.

Nota-se que, embora a regra estabelecida pelo referido dispositivo convencional seja a de que a denúncia deve ser exercida em relação à totalidade do tratado, o mesmo dispositivo prevê uma exceção ao dispor que as partes poderão acordar (quando o tratado já estiver em vigor) em sentido contrário, possibilitando-se assim a denúncia parcial do tratado em relação a determinadas matérias (denúncia parcial ratione materiae)[22], uma situação que não está prevista expressamente no Acordo de Paris.

Por fim, importa ainda ressaltar que a efetivação da denúncia e eventual saída dos EUA do Acordo de Paris não comprometerá o tratado como um todo e não importará em sua extinção, isto porque a “retirada de um Estado de um tratado multilateral põe termo ao status desse Estado como parte [no tratado] ou, em outras palavras, encerra suas relações convencionais com cada uma das outras partes” (tradução nossa).[23] Desse modo, ainda que a saída dos EUA do Acordo represente um enorme retrocesso nos esforços mundiais para a prevenção e combate das mudanças climáticas, em especial do aquecimento global, o tratado continuará em vigor internacional, produzindo plenos efeitos para todos os demais Estados Partes.


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[1] Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017.

[2] Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017.

[3] Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017.

[4] Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017.

[5] Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017.

[6] Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017.

[7] Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017.

[8] A técnica dos tratados-quadro (ou convenções-quadro), típica dos textos internacionais que versam sobre o meio ambiente consiste em adotar em tais instrumentos “textos relativamente vagos, com grandes linhas normativas e obrigações de conteúdo a ser posteriormente definidos, juntamente com a instituição de mecanismos precisos, pelos quais os Estados […] complementarão lacunas e imprecisões deixadas propositadamente por eles” (SOARES, Guido Fernando Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente. Barueri/SP: Manole, 2013, p. 100).

[9] Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017.

[10] A Convenção-Quadro começou a ser elaborada a partir da Resolução n. 43/53, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 06 de dezembro de 1988, baseada em uma proposta de Malta, com a finalidade de proteger o clima mundial. Na sequência, por meio da Resolução n. 45/212 foi criado um Comitê Intergovernamental de Negociações (CIN) responsável pelo texto da Convenção, que depois de elaborado foi adotado por consenso em 09 de maio de 1992.

[11] Uma interferência resultante da ação do ser humano sobre o meio ambiente e a natureza.

[12] No Protocolo de Montreal encontram-se regulamentados a produção, comércio e utilização de gases que causam a destruição da camada de ozônio que envolve a Terra, a qual obsta a entrada de raios ultravioleta, altamente prejudiciais à vida humana.

[13] SOARES, Guido Fernando Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente, op. cit., p. 59-60.

[14] Maiores informações sobre o Acordo podem ser encontradas em seu sítio oficial. Disponível em: . Acesso em 07 jun. 2017. O Brasil assinou o Acordo de Paris em 22 de abril de 2016, ratificando-o posteriormente em 21 de setembro do mesmo ano. Muito recentemente, por meio do Decreto n. 9.073, de 5 de junho de 2017, o Estado brasileiro internalizou referido tratado internacional, que passou a compor a ordem jurídica brasileira. Disponível em: . Acesso em 07 jun. 2017.

[15] Conforme estabelecido no site oficial do Acordo de Paris. Disponível em: . Acesso em 07 jun. 2017.

[16] DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 311.

[17] DÖRR, Oliver; SCHMALENBACH, Kirsten. Vienna Convention on the Law of Treaties: A Commentary. Heidelberg: Springer, 2012, p. 951.

[18] “Artigo 28. 1. Após três anos da entrada em vigor deste Acordo para uma Parte, essa Parte pode, a qualquer momento, denunciá-lo por meio de notificação por escrito ao Depositário”.

[19] “Artigo 26. O Secretário-Geral das Nações Unidas será o Depositário deste Acordo”.

[20] DÖRR, Oliver; SCHMALENBACH, Kirsten. Vienna Convention on the Law of Treaties, op. cit., p. 948.

[21] Países como França, Alemanha, Itália rejeitaram a possibilidade de renegociação do Acordo de Paris, aventada pelo Presidente Donald Trump. Disponível em: . Acesso em 07 jun. 2017. China, União Europeia e Brasil reafirmaram seus compromissos com o Acordo. Disponível em: . Acesso em 07 jun. 2017.

[22] DÖRR, Oliver; SCHMALENBACH, Kirsten. Vienna Convention on the Law of Treaties, op. cit., p. 952.

[23] DÖRR, Oliver; SCHMALENBACH, Kirsten. Vienna Convention on the Law of Treaties, op. cit., p. 952.



Source : ESDP

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