Conforme o artigo 16 da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, «A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição». Dito de outro modo, a Constituição baseia-se em dois principais pilares a saber, por um lado, a organização dos poderes, as relações entre os órgãos de soberania e, por outro lado, a determinação dos direitos e liberdades fundamentais dos governados[1].
Com efeito, depois de uma longa e persistente caminhada que iniciou a partir de 1975 e que foi marcada pela adopção de leis constitucionais (constituições provisórias), o povo angolano adoptou finalmente a Constituição do país através dos seus representantes na Assembleia Nacional (erguida em Assembleia Constituinte), com vista a edificar um Estado democrático e de direito, bem como uma sociedade justa[2]. Tirando as lições do passado, o povo angolano (governantes, partidos de obediência governamental ou da oposição, membros da sociedade civil) aproveitou a ocasião da adopção da Constituição de 2010 para reafirmar seu firme comprometimento com os valores e princípios fundamentais do Estado democrático e de direito, da pluralidade de expressão e de respeito dos direitos e liberdades fundamentais[3].
Composta por um rico preâmbulo e 244 artigos[4], a Constituição de 2010 prossegue e finaliza a ciclo constitucional liberal iniciada a partir de 1991, consagrando um Estado de direito em Angola. Também, marca uma ruptura com a Lei constitucional de 1975, colocando o homem e a sua dignidade no centro das atenções, contrariamente à Lei constitucional de 1975 que privilegiava o Estado em detrimento do indivíduo. Inspirando-se da lógica da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Constituição de 2010 marca, com um especial carimbo, a consagração dos direitos fundamentais, dando-lhes um lugar importante tanto no seu preâmbulo, nos seus princípios fundamentais, como no seu título 2º reservado para os direitos e deveres fundamentais[5]. Também esses direitos estão espalhados em todas as partes da Constituição.
Tradicionalmente, a Constituição tem uma parte introdutória, preliminar, nomeadamente, o preâmbulo. Este estabelece a génese dessa Constituição, as intenções, os objectivos, bem como as razões e os princípios que justificam sua redacção. De outro modo, o preâmbulo estabelece o projecto político, as ideias jurídicas, económicas e os grandes princípios que devem ser materializados no corpo da Constituição[6]. Esses princípios devem orientar o legislador ordinário e inspirar o intérprete no apuramento do sentido do sistema constitucional. O preâmbulo é um elemento natural e parte integrante da Constituição, porque dela não se distingue nem pela origem, nem pelo sentido, nem pelo instrumento em que se contém. Distingue-se dela apenas pela sua eficácia ou pelo papel que desempenha[7].
Embora a Constituição de 2010 tenha sido adoptada em conjunto com o seu preâmbulo pela Assembleia Nacional, promulgada e publicada pelo Presidente da República na mesma contextura, o paradoxo é que os Professores Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes defendem estranhamente que «o preâmbulo não tem força jurídica nem efeitos jurídicos e que não se pode sobrepor às normas constitucionais»[8]. Apesar de nutrir um profundo respeito para esses dois grandes professores, que influenciam o pensamento jurídico e constitucional angolano, decidiu-se abrir o debate sobre a normatividade ou o valor constitucional do preâmbulo da Constituição de 2010.
Daí, o objectivo do presente texto não consistir em fazer o balanço da Constituição, mas sim, em responder à questão de saber se o preâmbulo tem força jurídica e valor constitucional.
Nesta perspectiva, importa, por um lado, identificar os fundamentos da polémica e a forma como foi solucionada em França (I). Por outro lado, tratar-se-á, após realizar uma distinção entre declaração de direitos e preâmbulo, de demonstrar como o valor constitucional do preâmbulo da Constituição de 2010 foi consagrado pelo constituinte angolano (II).
I. OS FUNDAMENTOS DA POLÉMICA
Será questão de examinar a teoria do legicentrismo, que decorre dos pensamentos do Jean-Jacques Rousseau e das lutas desencadeadas pelo povo francês no contexto da revolução de 1789 contra os poderes absolutos da nobreza e do rei (A). Seguidamente, abordar-se-á a forma como essa teoria foi fragilizada e conheceu um declínio em França e na Europa depois da segunda Guerra Mundial (B).
A. O LEGICENTRISMO
Nascido em França no século XVIII do pensamento rousseauista, o legicentrismo é uma doutrina que afirma que a lei é a única forma de expressão da soberania da nação. Ela tem uma autoridade suprema e intransponível na ordem jurídica e fundamenta o Estado legal. Por outras palavras, o legicentrismo fundamenta-se na ideia central segundo a qual «a lei expressa todo o direito e todo o direito encontra-se plasmado na lei». Estreitamento ligado ao positivismo jurídico[9], o legicentrismo é defendido por alguns autores como Raymond Carré de Malberg e Gaston Jèze em França, e, no contexto europeu, por Hans Kelsen, John Austin e Norberto Bobbio. Assim, o poder legislativo tem uma preeminência tanto sobre o poder executivo considerado como arbitrário, na medida em que o principal fundamento do legicentrismo é que somente o legislador nacional tem a legitimidade para elaborar o direito obrigatório, geral e abstracto. É neste contexto que surgiu a tradição da soberania parlamentar e da soberania da lei através do artigo 6 da Declaração de 1789, que considera a lei como «a expressão da vontade geral (…)»[10].
Importa salientar que o legicentrismo foi a doutrina dominante na Europa até ao fim da segunda Guerra mundial e em França até ao fim da IV República em 1958. Mas, entrou em declínio por razão da deturpada utilização do positivismo jurídico para legitimar as leis liberticidas que Adolf Hitler forçou o parlamento alemão da altura a votar para cometer o genocídio dos judeus e outras atrocidades.
B. O DECLÍNIO DO LEGICENTRISMO OU A SOLUÇÃO DA POLÉMICA
O declínio do legicentrismo aconteceu em França em dois episódios. O primeiro surgiu no momento da adopção da Constituição francesa de 4 de Outubro de 1958, ao passo que o segundo episódio teve lugar com a decisão nº 71-44 do Conselho Constitucional francês de 16 de Julho de 1971 denominada «Liberté d’association».
Na véspera da adopção da Constituição francesa de 1958, existia uma polémica escolástica sobre o valor jurídico ou constitucional do preâmbulo da Constituição de 1946 e da Declaração de 1789.
Para os positivistas e legicentristas fiéis ao pensamento de Raymond Carré de Malberg, o preâmbulo da Constituição de 1946 e a Declaração de 1789 não têm valor jurídico na medida em que são considerados como meros enunciados filosóficos, declarações de intenções confusos e semelhantes a um texto literário[11].
Para os outros (jusnaturalistas e juristas-sociólogos), fiéis à lógica de Maurice Hauriou e Léon Duguit, a Declaração de 1789 bem como o preâmbulo da Constituição de 27 de Outubro de 1946 têm uma força jurídica idêntica ao texto da Constituição e impõem-se ao legislador na medida em que esses preâmbulos, Declarações e a Constituição foram elaborados pelas Assembleias Constituintes e decorrem do mesmo movimento político.
Para pôr fim ao debate sobre o valor jurídico dos preâmbulos, e conferir uma força constitucional ao preâmbulo da Constituição de 4 de Outubro de 1958, o poder constituinte francês procedeu de duas maneiras. Em primeiro lugar, o constituinte fundamentou-se no princípio da unicidade para submeter ao voto do povo francês a Constituição de 1958 e seu preâmbulo. Agindo assim, o poder constituinte francês estabeleceu uma igualdade entre a Constituição e o preâmbulo, dando desta forma uma força jurídica e normativa ao referido preâmbulo. Em segundo lugar, o constituinte francês conferiu ao Conselho Constitucional a competência para controlar contenciosamente a constitucionalidade das leis, fazendo referência ao preâmbulo da Constituição de 1946 e às diferentes declarações[12].
O segundo episódio do declínio do legicentrismo foi marcado pela decisão revolucionária do Conselho Constitucional francês de 16 de Julho de 1971, relativa à uma lei que completava os artigos 5 e 7 da lei de 1 de Julho de 1901 sobre o contrato de associação[13]. Foi a partir dessa decisão que os preâmbulos das Constituições têm o mesmo valor normativo que os artigos que compõem a Constituição na hierarquia das normas. Doravante, é consagrado que a lei expressa a vontade geral somente no respeito da Constituição.
Desta feita, convém examinar a forma como o valor constitucional do preâmbulo da Constituição de 2010 foi consagrado.
II. A CONSAGRAÇÃO DO VALOR CONSTITUCIONAL DO PREÂMBULO
Inspirando-se da experiência francesa, os professores Jorge Miranda e Rui Medeiros demonstram, através do seu comentário sobre o preâmbulo da Constituição portuguesa de 1976, que, sendo uma obra do poder constituinte, o preâmbulo é parte integrante da Constituição. Assim, os preâmbulos não podem ser assimilados às declarações de direitos. No entanto, após fazer a distinção entre as noções de preâmbulo e de declaração de direitos (A), tratar-se-á de mostrar como o valor normativo do preâmbulo da Constituição angolana de 2010 foi consagrado (B).
A. A DISTINÇÃO ENTRE DECLARAÇÃO DE DIREITOS E PREÂMBULO
Antes de tudo, importa salientar que não se deve confundir declaração de direitos e preâmbulo.
Com efeito, uma declaração de direitos é um texto que antecede geralmente uma Constituição, e que enuncia um conjunto de direitos individuais contra o Estado, bem como princípios necessários para sua protecção[14]. Como exemplo, podemos citar a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789, a Declaração americana de Independência de 4 de Julho de 1776 e, no plano internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948. Estes textos declaratórios aplicam-se de forma autónoma, seja qual for o valor constitucional, legal ou supranacional que lhes é conferido[15]. As Declarações são separadas da Constituição instrumental por razões técnicas e históricas.
Quanto aos preâmbulos, que são mais modestos, não beneficiam da autonomia de que gozam as declarações de direitos, na medida em que sua importância reside na unidade que fazem com o articulado ou o corpo da Constituição[16]. Parte preliminar ou natural de uma Constituição, de uma lei ou de um tratado, o preâmbulo é concebido como um conjunto de disposições imprecisas, de proclamações mais ou menos solenes, expressadas em termos gerais, filosóficas, desprovidas a priori, de valor normativo[17]. O preâmbulo aborda matéria atinente ao enquadramento histórico do nascimento da Constituição, sua justificação, seus princípios fundamentais e seus grandes objectivos[18]. Serve também como lugar de enunciação da ideologia que fundamenta os direitos reconhecidos e protegidos no corpo da Constituição. O preâmbulo articula-se em três partes. A primeira refere-se à génese da Constituição, ao passo que a segunda aborda o projecto político, a ideia de direito, os grandes princípios que ele materializa e que serão desenvolvidos no corpo da Constituição. Por fim, a terceira parte do preâmbulo refere-se à fórmula ou à maneira como a Constituição será aprovada pela Assembleia constituinte[19]. Além disso, a declaração possui um preâmbulo ao passo que o preâmbulo não tem um outro preâmbulo.
Nesta perspectiva, o preâmbulo é a sede dos valores em que se fundamenta a Constituição e que são materializados no dispositivo constitucional[20]. Assim, os valores que norteiam a Constituição angolana de 2010 são a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a justiça, o Estado democrático e de direito, a solidariedade, o progresso social e a paz[21]. Esses valores que compõem o preâmbulo são axiológicos (traves mestras) pois expressam ideias, ao passo que as normas que compõem o corpo da Constituição são deontológicas porque expressam o que deve ser ou se fazer. Isso deixa entender que o preâmbulo e o corpo da Constituição são inseparáveis e interdependentes. Assim, ainda que não exista qualquer norma que menciona expressamente que o preâmbulo é parte integrante da Constituição, a verdade é que os preâmbulos têm um valor normativo em virtude do princípio da lege feranda, quer dizer, pela simples dedução lógica[22].
Por outro lado, a Constituição nasce da vontade do povo e não de uma fracção da população ou de um órgão na medida em que a soberania pertence ao povo[23]. Em referência às ideias dos professores Jorge Miranda e Rui Medeiros, podemos dizer que a Constituição da República de Angola surge por virtude da independência, coroando a resistência do povo angolano ao antigo colonizador português. Seguidamente, surge da longa transição constitucional iniciada a partir de 1991. Não é o MPLA que decretou a Lei constitucional de 1975, mas é o povo angolano. Também, é o povo angolano, representado pela Assembleia Nacional, erguida em Assembleia constituinte que aprovou a Constituição de 2010[24].
Por fim, o preâmbulo é parte integrante da Constituição e tem valor jurídico na medida em que, à semelhança das normas que compõem o corpo da Constituição, o preâmbulo é a obra do poder constituinte, quer dizer, da Comissão constitucional instalada pela Assembleia nacional em virtude da Lei nº 2/09 de 6 de Janeiro. Por isso, este preâmbulo é aprovado nas mesmas condições que as disposições constitucionais[25]. Seguidamente, o acto jurídico que sanciona tanto a adopção do preâmbulo como das normas constitucionais é o mesmo e possui a mesma força jurídica. Votado pelo povo soberano através da Assembleia Nacional considerada como Assembleia Constituinte, o preâmbulo e o corpo da Constituição possuem um valor jurídico igual e a única diferença entre eles prende-se com o papel que ambos desempenham. Com efeito, segundo José Joaquim Gomes Canotilho, o princípio da unidade da Constituição significa que todas as normas contidas numa Constituição formal têm igual dignidade[26]. Portanto, se o preâmbulo faz parte integrante da Constituição, nenhum motivo se descortina para excluir a possibilidade de vir a ser alterado por uma revisão constitucional.
Todavia, convém reconhecer que o preâmbulo não pode ser invocado na sua globalidade num recurso de inconstitucionalidade. Apenas, os princípios ou valores nele consagrados podem ser invocados[27]. Por exemplo, o Tribunal constitucional do Benim, através do acórdão nº 96-088 de 12 de Agosto de 1996, declarou o valor constitucional do preâmbulo da Constituição beninense de 11 de Dezembro de 1990, baseando-se no princípio do Estado de direito para tirar as consequências que se impõem (separação de poderes, reconhecimento constitucional dos direitos e liberdades fundamentais, a supremacia da Constituição, etc.)[28]. A mesma situação se verificou em Portugal entre 1976 e 1982, quando a menção do Estado de direito só constava do preâmbulo e não do articulado[29]. Neste sentido, a doutrina e a jurisprudência retiraram as devidas ilações, nomeadamente a inconstitucionalidade de normais legais contrárias aos princípios do preâmbulo. Por isso, não há inconstitucionalidade por violação do preâmbulo como texto, mas sim, quando haja violação dos princípios consignados nele.
Com efeito, todas as disposições do preâmbulo não têm a mesma força jurídica e não são todas invocáveis[30]. Para saber os princípios ou valores preambulares invocáveis, a doutrina utiliza dois critérios a saber, o critério do nível de precisão por um lado; por outro lado, essa doutrina procura ver se a disposição preambular faz referência à uma lei.
No que diz respeito ao critério da precisão, o juiz administrativo distingue entre as disposições preambulares suficientemente exactas e as que são redigidos em termos gerais. Aqui, as primeiras produzem efeitos jurídicos por si e são imediatamente aplicáveis. No quadro da Constituição de 2010, podemos citar, por exemplo, os parágrafos 12 e 16 do preâmbulo[31]. Quanto às disposições imprecisas, não são aplicáveis de forma autónoma e assim, deve ser objecto de uma lei ou de uma convenção internacional para determinar seu conteúdo[32].
Quanto ao critério baseado na existência da remissão à uma lei, acontece, por vezes, que um preâmbulo consagra um direito ou um princípio, mas remete-se à uma lei para determinar as modalidades da sua aplicação. Neste caso, as disposições preambulares em causa não podem ser directamente aplicáveis, nem invocáveis diante do juiz porque a sua aplicação depende da lei à que se remetem[33].
Após o estudo da distinção entre as declarações de direitos e do preâmbulo, convém abordar a forma como o poder constituinte angolano consagrou a normatividade do preâmbulo da Constituição de 2010 através do processo constituinte.
B. O PROCESSO DE ADOPÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 2010
Existem vários procedimentos para decidir a forma da criação e aprovação da Constituição[34]. Por um lado, a Constituição pode ser aprovada por uma Assembleia constituinte e por outro, pela via do referendo constituinte. A República de Angola escolheu a forma de procedimento através da Assembleia Nacional constituinte em matéria constitucional.
À luz do artigo 158.1 da Lei constitucional de 1992, «A Assembleia Nacional poder rever a Lei Constitucional e aprovar a Constituição da República de Angola por decisão aprovada por dois terços dos Deputados em efectividade de funções»[35]. Importa salientar, antes de tudo, que o processo da elaboração da Constituição da República de Angola (CRA) teve dois episódios. O primeiro iniciou de 20 de Fevereiro de 1998 a 17 de Dezembro de 2004 e terminou com um fracasso, marcado pela extinção da Comissão constitucional pela Assembleia Nacional mediante a lei nº 12/04 de 17 de Dezembro[36]. O segundo episódio iniciou em 2009 após as eleições legislativas de Setembro de 2008 e terminou em Fevereiro de 2010 com um sucesso simbolizado pela adopção da CRA.
Com efeito, a despeito do fracasso de 2004, o governo angolano não cruzou os braços. Envidou esforços necessários para obter uma maioria suficiente que lhe possa facilitar a aprovação da nova Constituição para pôr fim à precaridade constitucional em que se encontra o país. Tendo ganho as eleições legislativas de 2008 com uma maioria qualificada de 81,64%, ou seja, 191 deputados sobre os 220 que compõem a Assembleia Nacional, o MPLA relançou o processo constituinte em prol da aprovação da CRA. Nesta perspectiva, a Assembleia Nacional adoptou a lei nº 2/09 de 6 de Janeiro que cria a Comissão constitucional. Começou desta forma o segundo episódio do processo constituinte angolano.
Apreciando os cinco anteprojectos de Constituição apresentados pelos partidos e coligações de partidos presentes na Assembleia Nacional, a Comissão constitucional, composto por 45 deputados seleccionados desses partidos acima citados, preparou três propostas de Constituição assentes em três matrizes de sistemas de governo: A (presidencialista), B (semi-presidencialista), C (presidencialista-parlamentar)[37]. Seguiu-se uma consulta pública, onde as diferentes componentes da sociedade civil deram várias contribuições após as quais a Comissão preparou a versão final da Constituição de Angola, fazendo a síntese das três propostas acima citadas. Nesta perspectiva, a Constituição de Angola (composta pelo preâmbulo e o dispositivo) foi definitivamente aprovada pela Assembleia Nacional, erguida em Assembleia constituinte por 186 a favor, nenhum contra e duas abstenções. A 5 de Fevereiro de 2010, essa Constituição foi promulgada pelo Presidente da República e publicada no mesmo dia no diário da República. A aprovação da Constituição, quer dizer, do preâmbulo e do corpo da Constituição num único documento, confere automaticamente uma força jurídica ao preâmbulo em pé de igualdade com o dispositivo.
À luz do presente estudo, pode se dizer que o preâmbulo da Constituição de 2010 tem, obviamente, valor constitucional e, por conseguinte, força jurídica ou normativa. A Constituição consagra muitos valores não só no seu preâmbulo, mas também no seu dispositivo. Entre esses valores é possível citar a dignidade humana, a liberdade, a igualdade, equidade, fraternidade, justiça, etc. Parafraseando Luciano Nascimento Silva, pode se dizer que não há como negar mais que os preâmbulos[38] em geral, e particularmente, o preâmbulo da Constituição angolana de 2010 tem uma força normativa e jurídica na medida em que expressam normas, princípios e valores que são exequíveis e imediatamente aplicáveis e exigíveis[39]. O preâmbulo da Constituição de 2010 foi votado em conjunto com o seu dispositivo, e não é a sua posição dentro do texto constitucional que poderá eliminar sua força jurídica.
Mas, para evitar qualquer controvérsia doutrinal, seria desejável que, no momento da revisão constitucional, o poder constituinte insira no texto preambular[40] ou no corpo da Constituição[41], uma disposição, indicando que «o preâmbulo é parte integrante da Constituição». Na falta disso, o Tribunal Constitucional poderá, caso seja solicitado, pronunciar um acórdão que consagra que o preâmbulo da Constituição de 2010 tem valor constitucional ou jurídico.
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O texto, objecto do presente artigo científico, foi apresentado em conferência na Faculdade de Direito da Universidade Kimpa Vita (Província do Uíge), no dia 12 de Março de 2020, diante de um público proveniente de vários estratos da sociedade angolana, no quadro das actividades alusivas à comemoração do décimo aniversário da Constituição da República Angola de 05 de Fevereiro de 2010.
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[1] Ver Bertrand MATHIEU e Michel VERPEAUX, Contentieux constitutionnel des droits fondamentaux, Paris, LGDJ, 2002, p. 9.
[2] Ver o parágrafo 5 do preâmbulo da Constituição da República de Angola (CRA) de 2020.
[3] Ver o parágrafo 12 do preâmbulo da CRA.
[4] A Lei constitucional de 1992 tem 166 artigo, a de 1991 tem 100 artigos ao passo que a Lei constitucional de 1975 comporta apenas 66 artigos.
[5] O título II da Constituição de 2010 vai dos artigos 22 a 88. Este título comporta três capítulos entre os quais o primeiro é reservado aos princípios gerais norteiam os direitos fundamentais (artigos 22-29), ao passo que o segundo capítulo denominado direitos. Liberdades e garantias fundamentais, vai dos artigos 30 a 75 da Constituição. Por fim, o terceiro capítulo reservado aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais vai dos artigos 76 a 88 da Constituição.
[6] Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 70.
[7] Ver sobre este ponto Jorge MIRANDA e Rui MEDEIRO, ibid., pp. 70-71.
[8] Raul Carlos Vasques ARAÚJO e Elisa RANGEL NUNES, Constituição da República de Angola Anotada, tomo I, Luanda, Gráfica Maiadouro-Maia, 2014, p. 175.
[9] O positivismo jurídico é uma corrente jurídica que rejeita a importância do direito natural e a referência aos valores morais, defendendo ao mesmo momento que só têm valor jurídico as normas regularmente elaboradas pelos actores estatais (Assembleia Nacional, autoridades administrativas, etc.) seja qual for o seu conteúdo. Ver sobre este ponto Gilles LEBRETON, Libertés publiques et droits de l’Homme, Paris, Dalloz, 2005, p. 21.
[10] Ver o artigo 6 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão segundo o qual: «A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente, ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos».
[11] Dominique ROUSSEAU (et al.), Droit du contentieux constitutionnel, Paris, LGDJ, 2016, p. 232.
[12] Ibid., p. 233.
[13] Regidas pela lei de 1 de Julho de 1901, e em virtude do princípio da liberdade de associação, as associações podem formar-se livremente, sem o controlo da administração, podendo ser reconhecidas pelo Estado mediante uma simples declaração junto do prefeito (governador em Angola). Mas, em 1971, a administração opõe-se ilegalmente à declaração da associação «Les amis de la cause du peuples», apoiado por Simone Beauvoir, recusando-se a conceder o recibo ou comprovativo de declaração. Na altura, o ministro do interior, Raymond Marcellin, suspeitava a referida associação de estar a reconstituir a Esquerda proletária, organização maoista dissolvida em 1970 e que tinha um jornal denominado «A causa do povo». Nesta perspectiva, o governo francês decidiu fazer votar uma lei para instituir o controlo administrativo da declaração das associações. Este controlo seria exercido pelo prefeito antes da declaração da associação, restringindo consecutivamente a liberdade de associação consagrada pela lei de 1 de Julho de 1901. Para que isso não aconteça, e sob iniciativa de um grupo minoritário parlamentar de tendência gaulista, o presidente do Senado, Alain Poher, recorreu ao Conselho Constitucional para controlar a constitucionalidade da lei que completava os artigos 5 e 7 da lei de 1901. Após a apreciação do sucedido, o Conselho Constitucional declarou a inconstitucionalidade do artigo 1 al. 2 e do artigo 3 da lei impugnada. Para mais pormenores, ver https://www.conseil-constitutionnel.fr/decision/1971/7144DC.htm.
[14] Raymond GUILLIEN e Jean VINCENT (dir.), op. cit., p. 175.
[15] Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, op. cit., p. 71.
[16] Idem.
[17] https://www.fallaitpasfairedudroit.fr/droit-administratif/le-bloc-de-legalite/la-constitution/407-l-invocabilite-du-preambule-de-la-constitution.de3-1958-fiche-technique.
[18] Ver, por exemplo, os parágrafos 5, 9, 10,11 e 12 do preâmbulo da Constituição angolana de 2010. O parágrafo 5 do preâmbulo dispõe que: «Destacando que a Constituição da República de Angola se filia e enquadra directamente na já longa e persistente luta do povo angolano, primeiro para resistir à ocupação colonizadora, depois para conquistar a independência e a dignidade de um Estado soberano e, mais tarde, para edificar, em Angola, um Estado democrático de direito e uma sociedade justa». O parágrafo 9 do preâmbulo enuncia que o povo angolano está decidido «a construir uma sociedade fundada na equidade de oportunidade, no compromisso, na fraternidade e na unidade na diversidade» ao passo que o parágrafo 10 expressa a determinação deste povo a edificar «uma sociedade justa e de progresso que respeita a vida, a igualdade, a diversidade e a dignidade das pessoas». O parágrafo 11 do preâmbulo relembra que «a actual Constituição representa o culminar do processo de transição constitucional iniciada em 1991, com a aprovação, pela Assembleia do povo da Lei nº 12/91 que consagrou a democracia multipartidária (…)», ao passo que o parágrafo 12 reafirma o comprometimento deste povo «os valores e princípios fundamentais da independência, soberania e Unidade do Estado democrático de direito, do pluralismo de expressão e de organização política, da separação e equilíbrio de poderes dos órgãos de soberania, do sistema económico de mercado e do respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do ser humano, que constituem as traves mestras que suportam e estruturam a presente Constituição».
[19] Ver em particular os parágrafos 1 e 18 da Constituição de 2010 que expressam a forma como a Constituição de 2010 foi aprovada. O parágrafo 1 do preâmbulo dispõe que: «Nós, o Povo de Angola, através dos nossos lídimos representantes, Deputados da Nação livremente eleitos nas eleições parlamentares de Setembro de 2008». O parágrafo acaba a formulação iniciada no parágrafo 1, dispondo que «Aprovamos a presente Constituição como Lei Suprema e Fundamental da República de Angola».
[20] Jónatas E. M. MACHADO e Paulo NOGUEIRA COSTA (da), Direito constitucional angolano, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 69.
[21] Ver os parágrafos 10, 12 e 16 do preâmbulo da Constituição angolana de 2010.
[22] Maurice KAMTO, «Les conférences nationales africaines ou la création révolutionnaires des Constitutions», in Dominique DARBON e Jean Du Bois GAUDUSSON (de), La création du droit en Afrique, Paris, Karthala, pp. 177-195.
[23] Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, op. cit., p. 70.
[24] Ver os parágrafos 1 e 18 do preâmbulo da Constituição de 2010.
[25] Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, op. cit., p. 71.
[26] José Joaquim GOMES CANOTILHO, Curso de direito constitucional, Coimbra, Almedina, citado por Luciano Nascimento SILVA, «O poder normativo do preâmbulo da Constituição», op. cit.
[27] Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, op. cit., p. 72.
[28] Ver Cour Constitutionnelle, Séfou Fagbohoun c. Ministre des travaux publics et des transports, Décision DCC nº 96-088, 6 de Dezembro de 1996. Neste acórdão, o Sr. Séfou Fagbohoun, solicita, mediante recurso, o Tribunal constitucional do Benim, no sentido de controlar a constitucional da carta que lhe foi enviada pelo Ministro das obras públicas e dos transportes beninense para lhe expropriar e reabrir as lojas alfandegárias nas instalações do aeroporto internacional de Cotonou. Considerando que as referidas lojas foram adjudicadas ou vendidas ao pedinte pelo Executivo beninense aos 8 de Agosto de 1994, e que a Constituição de 1990 cria no seu preâmbulo um Estado de direito no qual as liberdades públicas são garantidas, protegidas e promovidas, o Tribunal constitucional do Benim declarou a inconstitucionalidade da carta ministerial em causa. Para mais pormenores, ver DCC 96-088 de 6 de Dezembro de 1996.
[29] Ver Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, op. cit., p. 72.
[30] https://www.fallaitpasfairedudroit.fr/droit-administratif/le-bloc-de-legalite/la-constitution/407-l-invocabilite-du-preambule-de-la-constitution.de3-1958-fiche-technique.
[31] Ver o parágrafo 12 do preâmbulo da Constituição de 2010. Quanto ao parágrafo 16 do mesmo preâmbulo, «Fiéis aos mais altos anseios do povo angolano de estabilidade, dignidade, liberdade, desenvolvimento e edificação de um País moderno, próspero, inclusivo, democrático e socialmente justo».
[32] https://www.fallaitpasfairedudroit.fr/droit-administratif/le-bloc-de-legalite/la-constitution/407-l-invocabilite-du-preambule-de-la-constitution.de3-1958-fiche-technique.
[33] Idem.
[34] Zeferino CAPOCO, Manual de Ciência política e Direito constitucional, Lobito, Escolar Editora, 2015, p. 137.
[35] Ver o artigo 158.1 da Lei Constitucional de 1992.
[36] Perante o adiamento das eleições legislativas e presidenciais respectivamente de 1996 e 1997 para 2008 e 2009, a Assembleia Nacional decidiu agir antecipadamente para preparar a adopção da futura Constituição do país. Assim, a 20 de Fevereiro de 1998, a Assembleia Nacional aprovou a lei nº 1/98 que criou a Comissão constitucional para iniciar o processo de elaboração da Constituição. Depois de um aturado trabalho analítico de mais de 10 propostas de Constituição apresentados pelos partidos presentes na Assembleia Nacional, os peritos contratados pela Comissão constitucional elaboraram uma Constituição de 351 artigos. Infelizmente, no momento da adopção da mesma pelo plenário da Assembleia Nacional transformada em Assembleia constituinte, as divergências entre o MPLA e a oposição, sobretudo a UNITA, fizeram com que o quórum dos dois terços exigido pelo artigo 158 da Lei constitucional de 1992 não foi alcançado. O MPLA defendia que se aprove a nova Constituição antes da realização das eleições em conformidade com a lei de revisão nº 18/96 de 14 de Novembro ao passo que a UNITA defendia que se realizem essas eleições na vigência da Lei constitucional de 1992. Para mais pormenores, ver Carlos Maria FEIJÓ (coord.), Constituição da República de Angola: enquadramento histórico e trabalhos preparatórios, vol. I, Coimbra, Almedina, 2015, p. 45.
[37] Ibid., p. 49.
[38] Luciano Nascimento Silva, «O poder normativo do preâmbulo da Constituição», op. cit.
[39] Idem.
[40] Essa técnica da consagração preambular foi utilizada nomeadamente pela República do Benim.
[41] Ver o artigo 65 da Constituição camaronesa de 2 de Junho de 1972 modifica pela lei nº 96-06 de 18 de Janeiro de 1996.
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Mode de citation : Théophile KODJO, « A Constituição angolana de 2010 e a juridicidade do seu preâmbulo », Multipol, 16 mai 2020
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